Tais eram as maravilhas desta terra, quando aqui passaram a aportar os europeus, há cinco séculos, que muitos acreditaram que haviam encontrado o paraíso do qual falava a Bíblia. E se não fosse o paraíso bíblico, de onde foram expulsos Adão e Eva, ainda assim estas terras mereciam, dos europeus, aquele apelativo: paraíso. O que encontravam aqui chegava a parecer miragem: águas puras refrescantes em abundância, frutas nunca imaginadas e de sabor indescritível, uma fauna e uma flora exuberantes e inesgotáveis, e por habitantes, uma gente extremamente saudável, feliz e sem malícia. Aos poucos, do encanto dos navegadores e dos aventureiros se passou ao horror dos administradores coloniais: esse era um mundo esquecido, abandonado à natureza e a bestas feras, um mundo em que o “homem” nunca pôs os pés para transformar em um lugar habitável e útil. Assim nasciam as terras de brasil e dos brasis; assim nascia o Brasil.
Inaugurou-se, então, com a exploração do pau-brasil e da mão de obra indígena, a economia predatória que compõe toda a história do nosso país, ininterruptamente, há mais de 500 anos: papagaios, macacos, pau-brasil, cana-de-açúcar, ouro, diamantes, café, soja, milho, boi, suíno, frango, madeira, cana-de-açúcar, energia, minérios, ouro ilegal. Ao lado de tudo isso, possibilitando a economia predatória exportadora, a “queima” de vidas humanas, de milhões de indígenas e negros escravizados.
No período colonial, a partir da descoberta das minas gerais, em Portugal se inaugura um modelo de sociedade que seria transplantado ao Brasil no começo do século XIX, e onde perdura até hoje: uma elite gozando uma vida nababesca, na qual o desperdício constitui a necessária ostentação da sua riqueza, e uma população vivendo uma vida miserável. Transplantado ao Brasil, com a família real, em 1808, esse foi o estilo de vida do qual as elites locais – portuguesas e neo-brasileiras – não aceitaram abrir mão, quando a família real retornou a Portugal, em 1821.
Estavam dadas as condições para o Brasil declarar-se independente: nada de grandes sentimentos “patrióticos” (de uma pátria que ainda não existia), nada de sonhos de “liberdade” (é bom lembrar que o movimento da Conjuração Mineira era de escravistas), nada de um ideal de nação de feição americana a distinguir-se do mundo europeu. Apenas, só e simplesmente, os “ideais” de uma elite já constituída, bem representada por políticos comprometidos apenas com seus interesses de classe, interessados em perpetuar o Brasil da ostentação e do desperdício ao lado do Brasil saqueado, de uma população na miséria. Foram esses os “ideais” que levaram à proclamação da “Independência”, em setembro de 1822.
E de uma forma que se tornaria marca das elites políticas brasileiras – a saber, a total falta de escrúpulos, a mais completa desfaçatez e a capacidade de celebrar qualquer tipo de acerto desde que possa se manter locupletando com o erário público – os políticos brasileiros desejosos de “independência”, embarcaram no projeto da família real portuguesa (são os príncipes regentes que declaram a Independência), que também não estava disposta a abrir mão de seus muitos privilégios, seja em Portugal, seja no Brasil.
A vida nababesca das elites portuguesas, ou seja, da família real e da nobreza, dependia do ouro do Brasil, que na maior parte do tempo sequer encostava nos portos da Península Ibérica: carregamentos iam direto para a Inglaterra, a grande credora de Portugal, fornecedora de grande parte dos bens que importavam. Sendo assim, a “Independência” do Brasil não era apenas uma questão ou um problema para Portugal, mas uma questão crucial para a Inglaterra, em razão da dívida portuguesa de 3 milhões de libras esterlinas. A Inglaterra atuou, então, como mediadora do processo de saída do Brasil do império português, avalizando o acordo que, em 1825, transferiu ao Brasil a dívida portuguesa com aquele país, a título de “indenização” a Portugal.
Oito meses depois de declarada a Independência, instalou-se a Assembleia Constituinte, destinada a dar ao novo país sua primeira Carta Magna. O primeiro e fundamental debate que ali se colocou foi, exatamente, quem deveria ser considerado “membro” do novo Império, e quem seriam os seus efetivos “cidadãos”. Especificamente com respeito aos indígenas, os debates na Comissão de Colonização, Civilização e Catequização dos Índios não se limitavam a definir em que condições os indígenas poderiam vir a se tornar “cidadãos” (o que estava, de todo, interditado aos negros escravizados), mas principalmente tratavam de redefinir o controle sobre a mão de obra indígena aldeada, e de estabelecer o destino das terras dos aldeamentos, bem como das terras ocupadas pelas “hordas bravias”. O fim da escravidão de indígenas também se colocava em questão, por proposta de José Bonifácio. Os debates sobre a questão indígena não se refletiram na Constituição, uma vez que Dom Pedro I dissolveu a Constituinte e outorgou, ele mesmo, uma Carta Magna ao país em março de 1824. Preocupado, que estava, apenas com os plenos poderes que lhe seriam cerceados pela Carta elaborada na Constituinte,
Dom Pedro promulgou uma Constituição que praticamente se restringiu a tratar da organização do aparato do Estado.
As elites – desde então, brasileiras – que se tornaram a base política do novo Estado, não abandonaram, porém, as suas preocupações. Assumindo plenamente os poderes do Estado, a partir das Regências em 1831, puseram em marcha as reformas que pretendiam com respeito à política indigenista. Em 1832, a administração dos indígenas aldeados foi colocada na esfera de poder dos Juízes de Paz (título pomposo com que cada Coronel e chefe político local administrava o Direito na sua circunscrição). Na sequência, a fiscalização de eventuais abusos contra as populações indígenas foi retirada da alçada dos Juízes de Órfãos para ser entregue às Câmaras Municipais, ao mesmo tempo em que decisões judiciais autorizavam o arrendamento e aforamento das terras dos aldeamentos (cf. PARAISO, 2010). Eis aí o saldo, para as populações indígenas, do novo pacto de poder que constituiu o Império do Brasil.
Referência
PARAÍSO, Maria Hilda B. Construindo o Estado da exclusão: os índios brasileiros e a Constituição
de 1824. CLIO – Revista de Pesquisa Histórica, v. 28 (2), p. 1-17. Recife: UFPE, 2010.
Leia o artigo CONSTRUINDO O ESTADO DA EXCLUSÃO: OS ÍNDIOS BRASILEIROS E A CONSTITUIÇÃO DE 1824 de Maria Hilda B. Paraiso na íntegra:
Indigenas-na-Constituicao-de-1824
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