Texto apresentado oralmente no Ciclo de Debates “Cotas étnico-raciais no PPGE da FE-UNICAMP”, em mesa com o tema “Educação e os povos tradicionais indígenas”, promoção da Frente Pró-Cotas Unicamp e APG. Campinas, Faculdade de Educação UNICAMP, 29.mar.2016
Quando se quer pensar em educação em sociedades indígenas no Brasil há pelo menos 3 nomes que não se pode omitir ou deixar de consultar: Florestan Fernandes, Bartomeu Melià e Paulo Freire.
O primeiro, baseado na documentação etnográfica do primeiro século de colonização portuguesa, sobre os Tupinambá, escreveu um texto que todos os que pensamos ou interferimos, em algum momento, no campo da educação indígena, devemos ler: Notas sobre a educação na sociedade Tupinambá. Não se deve procurar, ali, um “modelo de educação” para os povos indígenas hoje, embora também haja informação preciosa, ali, sobre os modos tradicionais indígenas de educar. O que se tem a aprender nesse texto é que não existe educação in absolute, ou seja, sem contexto; não existem programas universais para educação em qualquer parte do mundo, independente da cultura e das condições sociais de existência, sobrevivência e reprodução de uma sociedade. A segunda coisa a aprender com Florestan é, justamente, como pensar o funcionamento do sistema educacional de uma dada sociedade (tenha ela escolas ou não) sem dissociar o diagnóstico e as propostas das reais condições de existência daquela sociedade.
Florestan Fernandes analisou os Tupinambá como uma sociedade que tende a um tipo de “integração organizatória” caracterizada por uma “formação societária ‘tradicionalista’, ‘sagrada’ e ‘fechada’ ” (Fernandes 197, p.33). Nesse contexto buscou entender quais as necessidades educacionais de uma tal sociedade, e com base na documentação etnográfica, analisou como os Tupinambá respondiam a tais necessidades. Com a mesma abordagem, F.Fernandes busca compreender como, em uma sociedade assim, se resolvia a tensão entre “inovação” e “tradição”, e que respostas sociais se desenvolveram para solucionar a tensão entre “indivíduo” e “coletividade”. Como características do modo próprio do “processo educativo Tupinambá”, F.Fernandes destacou três elementos: o valor da tradição, o valor da ação e o valor do exemplo. Essas três coisas se unem pela costura da cultura, e é só desvendando ou compartilhando os fios que produzem o alinhavo da cultura é que pode compreender com a profundidade necessária aqueles elementos na educação indígena. Não é supérfluo mencionar aqui um importantíssimo linguista do século passado, Edward Sapir, para quem, ao falarmos da cultura de um povo, não se trata propriamente do que as pessoas, em si, fazem, mas do sentido e do propósitodo que elas fazem.
Vivíamos, no Brasil, os tempos bicudos da Ditadura Militar quando um punhado de abnegados passou a assumir os riscos de denunciar a grave situação dos povos indígenas no país e, no interior das aldeias e terras indígenas, apoiar o intercâmbio e a organização dos próprios indígenas na luta por seus direitos. Na mesma época, com recrudescimento da ditadura de Stroessner, no Paraguai, muitas pessoas que lutavam ao lado dos pobres e dos indígenas tiveram que deixar o país. O jesuíta catalão Bartomeu Melià foi um desses, e para manter-se próximo ao país ao qual decidiu dedicar sua vida, abrigou-se no Brasil por alguns anos. Nesse momento o indigenismo alternativo ensaiava maiores passos, e no campo da educação escolar eram ainda raras as experiências, e raríssimas as que tinham uma razoável continuidade. Melià produziu, então, uma pequena apostila, em 1978, que no ano seguinte foi publicada como livro, em que distinguiu, antes de mais nada, “educação indígena” de “educação escolar indígena”. O que, para a maioria de nós hoje, parece uma distinção trivial, é um ponto de partida indispensável em qualquer ação, reflexão ou discussão sobre educação em sociedades indígenas.
Sem deixar de citar o trabalho aqui já referido, de Florestan Fernandes, Melià traz uma contribuição própria de grande relevância, a partir de sua longa e vasta convivência em comunidades de língua Guarani, e em especial, os Paĩ-Tavyterã (Kaiowá) do Paraguai, além de incorporar informações e relatos de outros indigenistas brasileiros contemporâneos. Melià aponta as deficiências e equívocos da “educação para indígenas”, e contrapõem suas características às de uma autêntica “educação indígena”. O livro ainda trata, também de forma pioneira no Brasil, de questões de alfabetização em comunidades indígenas.
O terceiro nome, que considero indispensável não omitir, é o de Paulo Freire. Há reflexões dispersas, dele, em diálogo com indigenistas e agentes de educação em comunidades indígenas, mas a relevância da contribuição dele à reflexão da educação em sociedades indígenas está na sua concepção do processo de conhecimento, que pede uma postura dialógica de educadores e educandos que se fazem, uns e outros, ou uns em outros (educadores em educandos, educandos em educadores), neste processo. É a única forma de se desenvolver ensino escolar que não se escore em hierarquias e autoridades e que seja capaz de respeitar ou de fazer desabrochar e desenvolver-se uma postura autônoma dos educandos.
Indígenas no ensino superior
É com as referências mencionadas antes que me acerquei, por primeira vez, da questão da educação escolar em sociedades indígenas, em meados dos anos 90. Ensino superior mal se colocava, então, como uma possibilidade para a formação de professores indígenas. Mas o caminho das Licenciaturas Interculturais passou a ser trilhado, rapidamente, gerando, em cerca de 20 anos, perto de três dezenas de cursos específicos nessa linha, em quase todos os Estados brasileiros.
Surgiram, nesse meio tempo, as demandas por cotas para indígenas em universidades, independentemente dos cursos. Várias Universidades as instituíram, inclusive Federais, como a de Santa Maria, de São Carlos e do Paraná.
É preciso trazer ao debate, no entanto, o fato de que a chamada “questão indígena” traz uma demanda qualificada e específica. Nas palavras do indigenista e historiador Antonio Brand (que, por décadas, atuou com os Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul), trata-se de um processo de “buscar trazer para dentro da Universidade as demandas não apenas de indivíduos, mas de povos em toda a sua diversidade” (Brand 2005:236).
Isso significa que, embora essa possa ser a aspiração pessoal e individual de alguns (ou mesmo, de muitos) indivíduos indígenas, a chamada “questão indígena” não experimenta avanços, nem a diversidade cultural ganha espaços na sociedade brasileira, quando se trata de pensar pura e simplesmente em vagas para indivíduos de ascendência indígena (seja ela forte ou fraca). Já há um vasto acúmulo de reflexão e de manifestações publicadas por intelectuais indígenas que vão ao cerne dessa questão. Citarei uma, a professora Pierlângela Nascimento da Cunha, indígena Wapichana de Roraima, que há uma década e meia é líder na organização dos professores indígenas daquele Estado. Em um debate sobre esse tema, há pouco mais de 10 anos atrás, ela disse:
“… a grande preocupação das comunidade é que retorno (…) esse aluno indígena daria depois, contribuindo com as comunidades e com as organizações indígenas.” (Cunha 2005, p. 233-234).
E mais adiante:
“As lideranças têm essa preocupação porque eles costumam dizer que a escolarização já tirou muitas coisas da nossa vida, então agora eles não querem que retirem mais coisas, mais conhecimentos. E que essa escolarização não sirva de meio de imposição aos nossos próprios filhos, e que também não retirem os filhos das próprias comunidades. (…) A escolarização já teve um impacto muito grande para nós, povos indígenas, já nos tirou muito: muitos conhecimentos, muitos valores. E a partir do momento que se tem o ensino superior, a preocupação é que não se retire agora, não só conhecimentos, não só valores, mas, o próprio indivíduo das comunidades indígenas”. (Cunha 2005, p. 234).
A perspectiva dialógica paulo-freireana, mencionada antes, aparece claramente na expectativa de intelectuais indígenas como Pierlângela. Segundo ela:
“Além disso, o que nós queremos, também, é ensinar os professores da universidade, que eles possam ter uma coletividade.” (Cunha 2005, p. 236).
E, para citar uma última vez a palavra dessa líder:
“… o desafio da formação acadêmica para os povos indígenas é fazer com que sejam reconhecidos os seus conhecimentos de forma igual aos conhecimentos acadêmicos” (Cunha 2005, p. 237).
Uma outra conhecida líder indígena no campo da educação, Francisca Novaltino, Pareci, que há anos integra o Conselho Nacional de Educação, faz eco às palavras de Pierlângela:
“Então, ainda estamos no ‘indígena no ensino superior’. ‘Ensino superior indígena’ é um sonho a ser alcançado. Eu creio que seria a construção de um novo conhecimento, um espaço de academia onde realmente o conhecimento indígena seria tratado com respeito e, principalmente, a gente teria um outro tratamento, construído com a participação efetiva dos povos indígenas.” (Novaltino 2005, p. 239).
Em uma reflexão que escrevi há dez anos atrás, afirmei, quase em tom de desabafo:
Não me comovem as falas dos índios que, estando já secularizados e fortemente vinculados à sociedade do branco (quase sempre, funcionários do Estado em algum nível), produzem discursos programáticos do tipo: nós queremos competir com os brancos. (D’Angelis [2005] 2012, p. 120).
A antropóloga Juracilda Veiga e eu detalhamos, alguns anos depois, o equívoco presente em afirmações como aquela:
… o que essa fala reflete é uma grande ingenuidade. Em primeiro lugar, porque uma sociedade não vence a outra (em uma competição de índios com brancos, por exemplo), senão pelas armas e pela dominação econômica. Nenhuma das duas alternativas está colocada para os povos indígenas. Resta, então, a “vitória” competitiva de indivíduos índios contra indivíduos brancos. A ingenuidade, aqui, está em pensar que todos os índios poderiam vencer na competição com os brancos.
A ingenuidade está em cair na armadilha de um discurso ideológico que omite as principais características da competição no mercado capitalista. (D’Angelis & Veiga [2009] 2012, p. 123-133).
Também discuti, em um texto já quase antigo (de 1999), mas não de todo anacrônico, o caráter que podem assumir os projetos de educação escolar indígena: mostrei os riscos de assumi-los meramente como projetos étnicos, e defendi a necessidade – para garantir seus rumos – de que sejam entendidos e praticados pelos indígenas como projetos étnico-políticos.
Para mim, então, há hoje três grandes desafios no que se refere à conquista de cotas étnicas voltadas aos povos indígenas em programas de Pós-Graduação das Universidades públicas:
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Construir propostas e soluções que não favoreçam indivíduos carreiristas descompromissados com a história, as lutas e os interesses de suas comunidades de origem. Um “índio que dá certo”, como indivíduo, que se desconecta de sua comunidade, não traz qualquer benefício à sobrevivência das sociedades indígenas e à construção de uma sociedade que valorize a diversidade étnica e cultural. Tomo como exemplo a experiências dos professores Mura, na Licenciatura específica que lhes é oferecida pela Universidade do Amazonas (UFAM).
- A produção acadêmica dos indígenas pós-graduandos rompe com as “caixinhas” estanques do nosso modo “ocidental” de produzir conhecimento. Que essa produção indígena tenha a qualidade acadêmica que lhes garanta o respeito, como pessoas indígenas e como representantes de culturas milenares em diálogo com os conhecimentos construídos e sistematizados no chamado “mundo ocidental”. O foco não é dar acesso aos índios a títulos acadêmicos pomposos (que, muitas vezes, tendem a levá-los para longe das aldeias); antes, o contrário, trata-se de contribuir à formação de novas gerações de intelectuais indígenas nas condições novas e específicas do nosso tempo.
- A ideia de que, por serem indígenas – considerando suas condições de escolarização, sua convivência em sociedades de tradição oral, sua proficiência na língua nacional, etc. – esses acadêmicos devam ser tratados com piedosa generosidade não contribui para uma imagem positiva dos povos indígenas, nem contribui para a formação que efetivamente esses indígenas buscam nas Universidades. Por outro lado, desconhecer aquelas diferenças – e todas as outras, historicamente produzidas, que justificam, hoje, as políticas de cotas – é tratar de modo igual aos que são desiguais, o que só acrescenta privilégios aos já privilegiados.
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A presença de estudiosos e pesquisadores indígenas não resvale para a produção de etnografias singelas e despolitizadas; ao contrário, seja oportunidade para construção de verdadeiros diálogos de saberes. Daí que, qualquer programa de Pós-Graduação, não pode render-se apenas ao argumento ou ao apelo da necessidade de fazer justiça com povos que foram discriminados e perseguidos; é preciso comprometimento dos programas com o diálogo intelectual e cultural, nunca despolitizado, que se coloca como desafio para os orientadores dos acadêmicos indígenas. O desafio, aqui, é não tratar com sujeitos indígenas como indivíduos, mas como uma coletividade de intelectuais indígenas que refletem, expressam e sistematizam posições coletivas.
Esse contexto cria uma oportunidade ímpar para as Universidades se renovarem, encararem novos desafios, sair das mesmices de uma certa zona de conforto ou acomodamento. O que impede que uma parcela importante dos docentes (e discentes) não perceba isso é o ranço elitista que ainda busca preservar-se nos cantos sombrios das estruturas acadêmicas, onde ainda não bate o sol que vem do mundo exterior, do mundo real, o mundo que garante o sustento da própria Universidade.
O elitismo e os preconceitos de classe, que ainda dominam setores da nossa Universidade, precisam, sim, ser enfrentados, denunciados e combatidos.
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