* Artigo de Wilmar Rocha D’Angelis, linguista (Unicamp) e indigenista (Kamuri), publicado no site da Unisinos.

Repercutiu bastante, na mídia brasileira, por conta da reação irada do governo de Israel, uma declaração do Presidente Lula a respeito do massacre da população palestina em Gaza pelo Exército de Israel (que alguns insistem em chamar de “guerra”). A declaração causou polêmica porque Lula comparou a ação israelense em Gaza com a política de extermínio de judeus por Hitler (significando: os nazistas).

Em um podcast chamado “Nós na história”, datado de 23/02 (#111 Lula, Netanyahu e Hitler na mesma frase), o assunto veio à baila, sob o enfoque de discutir-se os sentidos de “holocausto” e de “genocídio”, se sinônimos ou distintos, ou se “holocausto” estaria subsumido em “genocídio”. Participaram dessa discussão o escritor Eduardo Bueno (vulgo “Peninha”) e os comunicadores Luciano Potter e Arthur Gubert.

Abordar o tema do genocídio foi uma decisão oportuna, dada a polêmica criada na imprensa brasileira sobre a declaração de Lula, polêmica, por sua vez, deflagrada a reboque das reações do governo de Israel. E, de fato, o debate trouxe informações relevantes para o público em geral, basicamente pela exposição de Eduardo Bueno, e com contribuições de Luciano Potter.

Eduardo Bueno, o Peninha, escreve sobre história do Brasil, especialmente dos primeiros séculos, com base em vasta leitura de fontes bibliográficas. Isso não faz dele, propriamente, um historiador, mas é inegável que, num momento histórico em que as pessoas pensam que whatsappe tic-toc são fontes de informação, quem quer que leia e consulte livros tem uma vantagem incomensurável sobre os mortais comuns. Entretanto, como tudo que circula na internet, tudo o que circula em livros também exige uma atitude crítica e aprofundamento teórico para tornar um apanhado enorme de informação em uma interpretação adequada dos fatos históricos. E é aqui, vez ou outra, que Peninha escorrega, porque tem um gosto pela historiografia um tanto tradicional (embora, nela, conheça as obras de um Capistrano de Abreu) e uma bronca com os que ele entende serem –ou classifica como– “historiadores de esquerda”.

No podcast, aqui mencionado, destaca-se a seguinte afirmação do escritor: A decisão deliberada de exterminar todo um povo e riscá-lo da face da terra, ou seja, uma decisão genocida, esteve longe de ser ‘exclusividade de judeus’. Muitas e muitas vezes ao longo da história, muitas mesmo, mais de 10, nações europeias tomaram a decisão de erradicar da face da terra determinados povos. (aprox. aos 8:00 min.).

E mais adiante, na sequência desse raciocínio, segue-se o trecho abaixo, que merece reparo:

É muito louco que os Tupis – que era o principal grupo indígena que ocupava toda a costa do Brasil – Tupi quer dizer “o povo”, eles se consideravam tão fodões que eles eram “o povo”; e os demais povos, eles denominaram de Tapuias – “Tapuia” é uma palavra tupi que quer dizer “bárbaro”, que quer dizer “os outros”, que quer dizer “aqueles que não são que nem nós”. E os Tupis trataram de dominar, conquistar, escravizar e matar os Tapuias. E com isso o que eu quero dizer? Que não é uma exclusividade do europeu querer matar os outros. Os outros povos também tentaram matar-se entre si próprios; os Tupis tentaram matar muitos tapuias. (aprox. 17:30 min.).

É verdade, diga-se em primeiro lugar, que os povos indígenas de fala Tupi (ou, mais especificamente, falantes de línguas da família Tupi-Guarani), habitantes de extensas faixas do atual litoral brasileiro (do Pará ao litoral paulista), eram dados à guerra. Quando aqui chegaram os primeiros portugueses e franceses para estabelecer ocupações permanentes, conheceram dessas guerras, e os cronistas mais qualificados de então registraram que não se tratava de guerras de conquista territorial (embora, antes da chegada dos europeus, povos Tupis também tenham feito guerras para ocupar a faixa litorânea, e dali expulsar outros povos), e muito menos, guerras de extermínio de outros povos. Eram guerras voltadas ao aprisionamento de inimigos, para uso em seus sacrifícios rituais antropofágicos, e guerras de vingança contra os inimigos que tivessem feito o mesmo contra eles.

O jesuíta Manoel da Nóbrega, em uma carta de 1549, assim escreveu:

Fazem guerra, uma tribu a outra, a 10, 15 e 20 léguas, de modo que estão todos entre si divididos.(…)Não se guerreiam por avareza, porque não possuem de seu mais do que lhes dão a pesca, a caça e o fructo que a terra dá a todos, mas somente por ódio e vingança (…)” (Cartas do Brasil – 1549-1560. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1931, p. 90).

É igualmente ilustrativo o depoimento – 60 anos depois – do capuchinho francês, Claude D’Abbeville, que integrou a experiência de ocupação francesa no Maranhão, no começo do século XVII:

É preciso primeiramente que se saiba que não fazem a guerra para conservar ou estender os limites do seu país, nem para enriquecer-se com os despojos dos seus inimigos, mas unicamente pela honra e pela vingança. (História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas, originalmente publicada em 1614. Cito a edição brasileira, na tradução de Sérgio Milliet, p. 229).

Vale indicar, a quem tenha interesse, a leitura do clássico de Florestan Fernandes: A função social da guerra na sociedade Tupinambá.

Eram, pois, sociedades guerreiras, e por isso mesmo, os inimigos preferenciais deles não eram os “tapuias” (embora também fizessem guerras a eles). Os inimigos preferenciais de um grupo Tupi (Tupinambá, Tupiniquim, Tupinaé e outros) eram outros grupos falantes da mesma língua e participantes da mesma cultura. Exterminá-los significaria perder aqueles com os quais compartilhavam valores e práticas guerreiras e rituais. Um inimigo “tapuia” aprisionado, poderia tentar a fuga, dado que não compartilhava, com os Tupis, seus ideais de honra e sua compreensão da guerra. Já um outro Tupi, aprisionado, via-se compelido a aceitar a mulher que lhe designavam, e a esperar o momento de seu sacrifício ritual, momento no qual teria a palavra para lançar, contra os que o matariam, a ameaça da vingança de sua morte, por seus parentes.

Por fim, uma última retificação à fala de Peninha: não há nenhum reconhecido estudioso de línguas Tupi que informe a tradução desse termo como sendo “o povo”.

Para concluir, resta comentar o que repercutiu a respeito da fala do presidente Lula. É meio óbvio que Lula não disse que o Estado de Israel matou ou está matando tantos palestinos quanto Hitler; ou seja, não é sobre quantificação dos atos comparados, mas sobre suas intenções. A direita de Israel, suporte fundamental do governo Netanyahu, e o próprio Netanyahu, estão de acordo em que é preciso eliminar os palestinos das terras que Israel pretende anexar, e para isso vem atuando há décadas. Pode ser que eles se contentem com a expulsão de todos os palestinos de Gaza e da Cisjordânia, mas colocar um exército fortemente armado e treinado para exterminar civis não pode receber outro qualificativo que não o de genocídio. É disso que o Presidente Lula falou. Tanto assim que, dias depois, retomou sua fala, sem mencionar Hitler, mas expressamente qualificando a ação de Israel em Gaza como “genocídio”. Para bom entendedor, o esclarecimento estava dado: quando falei de Hitler, quis dizer que a ação de Israel não difere da prática nazista genocida contra judeus (e contra minorias).

Nenhum comentário ainda

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *