Encerrou-se, no dia 29 de setembro último, o XII Encontro sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas (ELESI) na Universidade Federal da Bahia (UFBA), com a aprovação do Documento de Salvador.
Os ELESI foram criados em 1995, e chegam à sua 12a edição com pleno sucesso em todos os sentidos: participação indígena, aprofundamento de questões urgentes para os povos originários nos campos da educação, línguas e sustentabilidade. O XII ELESI aconteceu de 26 a 29 de setembro, promovido pela KAMURI e pela UFBA, realizado nas dependências do Instituto de Letras e do Instituto de Biologia daquela Universidade, coordenado pela Profa. Dra Ivana Pereira Ivo, e pela doutoranda em linguística, Profa. Cinthia Malta. Aqui apresentamos o documento final do Encontro:
DECLARAÇÃO DE SALVADOR, DO XII ELESI
Reunidos no XII Encontro sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador, nos dias 26 a 29 de setembro de 2023, educadores e pesquisadores indígenas e não-indígenas nos dedicamos a refletir e avaliar a realidade das línguas indígenas e a situação da educação escolar indígena em nosso país, tanto em nossas práticas cotidianas – nas aldeias, nas escolas indígenas, nas universidades, nas ONGs e em instâncias de governo -, quanto no tratamento dado a essas questões nas políticas públicas em andamento.
Nos alegra constatar o crescimento dos movimentos de professores indígenas, comprometidos com o fortalecimento de suas culturas e línguas originárias. Igualmente nos alegra e alimenta nossas esperanças quanto ao futuro, o que se está chamando de “levante das línguas originárias”, sob a liderança do GT Nacional da Década Internacional das Línguas Indígenas.
Em contrapartida, são muitas as questões que inspiram preocupação, no tocante às políticas públicas vigentes, particularmente com respeito à ação das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação. Enumeramos, aqui, as principais questões que nos preocupam, pelo impacto positivo que deixam de ter, e principalmente, aquelas que têm claro impacto negativo sobre a educação escolar indígena.
Em primeiro lugar, a todos causou estranheza e preocupação que o Ministério da Educação não tenha destinado dotação orçamentária específica para a educação escolar indígena. A criação de um Ministério dos Povos Indígenas não retirou do MEC sua obrigação e compromisso com a educação escolar indígena, assim como não deveria significar uma redução do espaço desse campo de trabalho no organograma deste Ministério.
Ao mesmo tempo em que, em termos de estrutura organizacional e de recursos dedicados, a educação escolar indígena parece perder espaço no MEC, o mesmo Ministério deixa divulgar sua intenção de retomar a ideia dos Territórios Etno Educacionais. A proposta dos Territórios Etno Educacionais faz sentido como política de respeito e fortalecimento da autonomia das comunidades indígenas no campo da educação escolar. A falta de recursos destinadas para educação indígena no MEC compromete as possibilidades de implantação dessa proposta, e torna as comunidades limitadas em sua autonomia educacional.
Nos somamos à proposta já defendida em outras instâncias do movimento de educadores indígenas, como o FNEEI, pela criação de uma Secretaria de Educação Escolar Indígena no MEC.
No âmbito dos Estados federados, além da já conhecida má vontade, e do ranço burocrático que pesa sobre a educação escolar indígena em várias unidades da federação, soma-se uma nova onda de controle sobre os professores indígenas e suas atividades pedagógicas. Por um lado, se acrescentam exigências burocráticas de registro diário, em programas on line, dando a perceber que tais Secretarias não enxergam os professores indígenas como verdadeiros educadores, mas como outros tantos burocratas da própria Secretaria, obrigados principalmente a bater o ponto. Por outro lado, em geral as mesmas Secretarias não reconhecem a participação de professores indígenas em congressos, encontros e oficinas como dias de formação. Aqui mesmo, neste Encontro, há professores/as que foram alertado/as (talvez se devesse dizer, ameaçado/as) de corte de ponto, caso se ausentassem para estar aqui. Caracteriza-se nisso um flagrante desrespeito aos incisos I e II do Artigo 78 da LDB (Lei nº 9.394/96).
Além das manifestas preocupações acima, queremos apontar caminhos necessários e possíveis para superarmos algumas das grandes dificuldades que hoje enfrentam, os educadores indígenas, para levar adiante seu compromisso educacional:
– a necessidade de se criar um Sistema de Ensino próprio e federalizado para a Educação Escolar Indígena, em todas as suas modalidades e níveis, que atenda às especificidades da diversidade étnica, linguística e sociocultural das escolas indígenas no país. Qualquer um que acompanhe a trajetória da educação escolar indígena em nosso país (e nos ELESI, fazemos isso há quase 30 anos) já terá concluído que, salvo honrosas e pouquíssimas exceções, os Estados federados assumem a educação escolar indígena como apenas mais uma tarefa burocrática a cumprir. Enquanto isso – e as décadas vão passando – as línguas indígenas se tornam cada dia mais ameaçadas e os jovens indígenas não encontram, na escola, uma real alternativa de futuro para si e para seus povos.
– a necessidade de se reconhecer, finalmente, em todo o país, a carreira de Professor Indígena, como uma categoria específica nos Planos de Carreira, o que pode se dar dentro da criação de um Sistema Federal de EEI.
– a necessidade de se avaliar profundamente a realidade dos ensinos bilíngue e monolíngue nas escolas indígenas brasileiras, aproveitando o estímulo da Década Internacional das Línguas Indígenas, e de se criar um programa nacional destinado a orientar a implantação, avaliação local e reestruturação do ensino bilíngue nas aldeias, onde se mostre necessário para efetivamente contribuir ao fortalecimento da língua indígena.
– a urgente necessidade de repensar o Ensino Médio em comunidades indígenas (seus propósitos, suas práticas e seus resultados), na realidade das diferentes etnias, rompendo com os modelos integracionistas que transformam a educação escolar indígena, naquele nível, em mera formadora de mão de obra para o sistema capitalista.
– a necessidade de se incluir a publicação de Livros Didáticos Indígenas e de Literatura Indígena nos Programas do PNLD, encerrando 20 anos de exclusão dos povos indígenas naquele importante programa.
– a busca de criar estratégias para colocar em circulação, nas escolas indígenas e não indígenas, as literaturas e demais produções artísticas dos povos indígenas.
Depois de quatro anos de verdadeira barbárie contra as instituições, e contra os avanços conquistados – ao longo de mais de três décadas – pela sociedade brasileira como um todo, e pelos povos indígenas e suas organizações em especial, o que esperamos de um governo democrático, eleito pelo esforço e trabalho de todas as forças vivas da nação, é compromisso real com essas forças. Os povos indígenas, salvo raras exceções, são uma parte dessas forças vivas que seguem defendendo a construção de um Brasil menos injusto, políticas públicas mais inclusivas e valorização de toda forma de diversidade.
O que esperamos do atual governo é que honre os compromissos constitucionais de respeito, defesa e fortalecimento dos povos indígenas, suas culturas, línguas e territórios. A questão da criação de um Sistema Federal de Educação Indígena coloca-se nessa pauta, assim como todas as demais questões que referimos neste documento.
Trazemos aqui as nossas vozes, de todos os cantos, e enviamos a você, as nossas vozes, a todos os cantos!
Salvador, BA, 29 de setembro de 2023
Em nome dos participantes do XII ELESI, assinam
Ivana Pereira Ivo – Coordenadora Geral do XII ELESI
Domingos Barros Nobre – Presidente do Comitê Científico do XII ELESI
Juracilda Veiga – Coordenadora Geral da KAMURI
Nenhum comentário ainda