(Década Internacional das Línguas Indígenas, 2022-2032)
De 9 a 11 de Agosto acontece o I Encontro Nacional do GT Nacional da Década Internacional das Línguas Indígenas. Coordenado pelo Comitê Executivo do GT Nacional (Ms. Anari Braz Bomfim, Dra Altaci C. Rubim – na foto acima, Dra. Sâmela Meirelles, e demais) o I Encontro reúne lideranças e professores indígenas representando todas as regiões do país. O Encontro tem apoio da Kamuri, do CIMI, da Embaixada dos EUA, de Universidades da Amazônia (UFAM, UEA, UNIFAP, e também IFAM), do Ministério dos Povos Indígenas, da Funai e outras entidades.
A primeira mesa de debates do Encontro aconteceu na manhã do dia 9, com o tema “Políticas Linguísticas”. Reproduzimos aqui a fala, nesta mesa, do Prof. Wilmar D’Angelis (Unicamp), membro da Kamuri.
7 CONDIÇÕES PARA O SUCESSO DAS POLÍTICAS
DE MANUTENÇÃO E FORTALECIMENTO DE LÍNGUAS INDÍGENAS[i]
Wilmar R. D’Angelis
Quero começar agradecendo o honroso convite para participar deste Encontro Nacional. E aproveito para parabenizar o GT pela capacidade de articulação e de organização, e a todos aqui pelo profundo engajamento.
Tenho refletido e escrito sobre Políticas Linguísticas há algum tempo. Em 2001 apresentei um primeiro texto, mais elaborado, no Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação.[ii] Voltei a tratar dessas questões no ano passado, quando li, no X Encontro Internacional de Investigadores de Políticas Linguísticas, realizado no Chile, em setembro, o texto: Para uma política nacional (no Brasil) de defesa e fortalecimento das línguas minoritárias.[iii] Retomei o tema, da perspectiva das tarefas da Linguística no Brasil, em uma conferência que proferi no XV Celsul, em Curitiba, no mês de outubro de 2022.[iv]
No mesmo ano de 2022, e na mesma época, redigi o capítulo: Por uma Política Linguística Indígena no Brasil,[v] que em breve sairá publicado em livro. É desse último texto que pensei em compartilhar algumas ideias com vocês, nessa mesa.
Começo esta minha fala, lendo duas citações.
A primeira, de um documento da UNESCO de 2003, chamado Vitalidade e risco de extinção de línguas.[vi] Diz o documento:
Cerca de 97 por cento da população mundial fala em torno de 4 por cento das línguas do mundo; e inversamente, cerca de 96 por cento das línguas do mundo são faladas por aproximadamente 3 por cento da população do planeta (Bernard, 1966, p. 142). […] Estimamos que aproximadamente 90 por cento das línguas será substituída por línguas dominantes até o final do século XXI.
(UNESCO, 2003, p. 3).
A segunda citação, eu tiro de um artigo da linguista Dulce Franceschini, onde ela aponta o único caminho que pode salvar, do desaparecimento, uma língua minorizada:
Para frear um processo de perda linguística e cultural, é necessária a adoção, pelos grupos minorizados, de uma política linguística de resistência e manutenção, com o aval das instituições governamentais.
(Franceschini, 2011, p. 59 – adapt.)
O triste quadro projetado para o futuro das línguas, no texto da UNESCO, não é um exagero. O documento citado foi produzido e revisado por alguns dos maiores nomes, entre os conhecedores desse tema no mundo inteiro. E o quadro preocupante apresentado por eles, não é menos preocupante no território brasileiro.
As experiências de ações de revitalização linguística que acontecem em todas as regiões do Brasil, embora tenham produzido muitos materiais, apenas em poucos casos têm realmente chegado a uma revitalização da língua, com a ampliação de falantes nas aldeias e a retomada da transmissão intergeracional. Para que os resultados sejam mais consistentes, e os objetivos sejam atingidos, penso que faz falta:
– uma maior interação entre as diferentes experiências (troca de informação, de conhecimentos, de práticas avaliativas).
– um respaldo e apoio concreto mais efetivo do Estado às iniciativas das comunidades.
– políticas indutoras da parte do Estado (nos diferentes níveis de administração), lá onde as comunidades não tenham as condições para dar os passos iniciais por si mesmas.
É importantíssimo destacar a formação, nas últimas duas décadas, de um respeitável corpo de pesquisadores indígenas, qualificados na área de Ciências Humanas (e com destaque para o campo da Linguística). Já se contam em dezenas os títulos de mestrado e doutorado de pesquisadoras e pesquisadores indígenas. Esse fato estabelece um novo cenário, muito diferente daquele que tínhamos no final do século passado, nos anos que se seguiram à promulgação da Constituição Federal de 1988.
A presença desses pesquisadores indígenas em eventos acadêmicos de todo tipo, nacionais e internacionais, ao lado de sua militância junto aos movimentos sociais, à sociedade civil organizada e nas redes sociais, têm garantido a visibilidade das questões de interesse dos povos indígenas em uma escala nunca antes alcançada no Brasil. E, ao mesmo tempo, isso tem ajudado a consolidar a imagem da legitimidade (representatividade) de suas falas e de seus posicionamentos como representativos do sentimento das suas comunidades de origem.
Nesse contexto, é significativa a constituição e a militância do GT Nacional para a Década Internacional das Línguas Indígenas. Em seu Plano de Ação,[vii] o GT Nacional para a Década das Línguas Indígenas estabeleceu a criação de GTs Regionais, que definirão localmente as ações de fortalecimento e defesa das línguas indígenas da respectiva região, ao longo da Década. Portanto, temos aqui, pela primeira vez no país, um embrião de organização de povos originários para definição de políticas linguísticas regionais e de uma política linguística indígena nacional. E é também um passo a mais na reconstrução da autonomia das sociedades indígenas em território brasileiro.
Se a constituição de uma política linguística indígena, de âmbito nacional, se torna possível pela primeira vez em nossa história, isso não significa que estamos perto de assistir à constituição de uma Política Linguística Nacional, de matriz indígena, para as línguas de seus povos. Para que isso seja possível, ou seja, para que a política linguística oficial seja conduzida pelos próprios povos originários, senhores de suas línguas ancestrais, como parte das políticas públicas no país:
a) é necessário que as instâncias indígenas de discussão e formulação de política linguística, que forem se constituindo autonomamente, sejam reconhecidas, respeitadas, ouvidas e acatadas pelos poderes do Estado (Executivo, Judiciário e Legislativo; nos três níveis: federal, estadual e municipal) e pelas entidades da sociedade civil (aí incluídas as ONGs e as Universidades). Além do próprio GT Nacional da Década e de suas Coordenações Regionais, um exemplo é a Academia da Língua Nheengatu. Vale também destacar, nesse aspecto, a afirmação de Rubim, Bomfim e Meirelles (2022, p. 172): “A elaboração de políticas públicas para as línguas indígenas precisa considerar que já existem políticas linguísticas indígenas em curso, desenvolvidas pelas próprias comunidades.”
b) é indispensável que seja reconhecido assento, no CNPI – Conselho Nacional de Política Indigenista, de uma representação das instâncias indígenas que forem se constituindo. Mais que isso, o próprio movimento indígena reivindica “a criação de um Instituto Indígena de Políticas Linguísticas, no âmbito governamental (…), coordenado pelos povos indígenas, cujos objetivos são a proposição, o planejamento e a execução de políticas linguísticas” (Rubim, Bomfim e Meirelles, 2022, p. 173).
c) é urgente que seja formulada, com a participação decisória da representação das instâncias indígenas próprias, uma política editorial pública para publicações em línguas indígenas, não restrita a obras de caráter didático.
E para que as políticas linguísticas de manutenção e fortalecimento de línguas indígenas sejam eficazes, é igualmente relevante, e em muitos casos, indispensável:
1. que as condições gerais de vida das comunidades lhes garantam segurança alimentar, bem como o ambiente e os meios de sua vida cultural. Nas palavras de Rubim, Bomfim e Meirelles (2022, p. 166): “sem a garantia da demarcação dos territórios e dos modos de vida próprios dos povos indígenas, constantemente ameaçados pelo Estado brasileiro, não podemos avançar muito nos projetos de revitalização e retomada de línguas indígenas”.
2. que sejam criadas formas de valorização real do uso das línguas ancestrais nas respectivas comunidades étnicas, envolvendo, inclusive, estímulo financeiro.
3. que a educação escolar restabeleça a relação da infância e da juventude indígena com a terra, onde isso não esteja mais acontecendo;
4. que seja regulamentada, em todos os estados da federação, a carreira de professor indígena bilíngue.
5. que nas comunidades bilíngues o oferecimento do ensino bilíngue (língua indígena / português) seja obrigatório ao longo de toda a Educação Básica.
6. que a língua indígena da comunidade seja disciplina obrigatória nas respectivas escolas indígenas, e língua de instrução, onde ela for a língua materna dos alunos.
7. que línguas indígenas estejam cada vez mais presentes no mundo digital, e que cada povo possa fazer o melhor uso das tecnologias de informação e comunicação para o fortalecimento e a visibilização de suas línguas ancestrais.
Porém, a possibilidade de que uma tal Política Linguística Indígena seja alçada a Política Pública, quer na esfera federal, quer nos diferentes estados, não nos parece um caminho já aplainado. Essa há de ser a grande bandeira dos povos indígenas, ao lado de suas já tradicionais bandeiras de luta pela demarcação das terras, contra o garimpo e contra a exploração de madeiras em seus territórios.
Isso me lembra um trecho do meu texto de 2001 sobre o assunto, onde escrevi:
… o Estado brasileiro tem uma política linguística, mas como tudo que se abriga em um Estado multifacetado e já não mais monolítico (em razão das conquistas da sociedade civil), a política linguística desse Estado é contraditória e se mostra, claramente, como um campo de debate e de disputas de projetos diferentes. (D’Angelis [2001], 2012, p. 99).
E concluo com outra citação daquele mesmo estudo:
Ao defender a necessidade e oportunidade de ações ofensivas no campo da política e planificação linguística pelas sociedades indígenas entendo que é possível planificação e ações concretas de implementação de políticas linguísticas ao largo do Estado. E mais: sugiro que tais tipos de iniciativas são necessárias, indispensáveis mesmo, para as sociedades indígenas experimentarem um projeto de autonomia. Isso não significa renunciar às ações e articulações para consolidação de políticas públicas democráticas valorizadoras da diversidade linguística e apoiadoras da vitalização de línguas minoritárias. Mas significa, por outro lado, não reduzir a ação do movimento indígena e do indigenismo ao círculo fechado de conversa com o aparelho do Estado, ao oficialismo e à burocratização, que são sempre redutoras e sufocadoras das posturas mais criativas. (Idem, p. 99-100).
Referências:
D’ANGELIS, Wilmar R. [2001] (2012). Quem vai de arrasto, não tem compromisso. Publicado no vol. 4 do Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação (pelo MEC, em 2002), foi inserido em minha coletânea: Aprisionando sonhos: a educação escolar indígena no Brasil (Campinas: Ed. Curt Nimuendajú, 2012, p´. 95-108.
________. (2022). Para uma política nacional (no Brasil) de defesa e fortalecimento das línguas minoritárias. Apresentação no X Encuentro de Internacional de Investigadores de Políticas Linguísticas, promovido pelo NEPI, do Programa de Políticas Linguísticas da AUGM. Valparaíso, Chile: Universidad de Playa Ancha, 28-30 set. 2022. Disponível em: https://kamuri.org.br/kamuri/para-uma-politica-nacional-no-brasil-de-defesa-e-fortalecimento-das-linguas-minoritarias/
________. (2023). Uma necessária Política Linguística (mas não qualquer uma) e as tarefas ainda urgentes da Linguística no Brasil. A sair, em Gesualda L. S. Rasia et al. (Orgs.).
________. (2024). Por uma Política Linguística Indígena no Brasil. A sair em: Kanavilil Rajagopalan & Kleber Silva (Orgs.), Políticas Linguísticas no Brasil: rumos, contornos, perspectivas e meandros – Volume 3. Campinas: Mercado de Letras.
FRANCESCHINI, Dulce. (2011). Línguas indígenas e português: contato ou conflito de línguas? Reflexões acerca da situação dos Mawé. In SILVA, Sydney S. (org.), Línguas em contato. Cenários de bilinguismo no Brasil. Campinas: Pontes, p. 41-72.
RUBIM, Altaci C.; BOMFIM, Anari B.; MEIRELLES, Sâmela R.S. (2022). Década Internacional das Línguas Indígenas no Brasil: o levante e o protagonismo indígena na construção de políticas linguísticas. Working Papers em Linguística, v. 23, n. 2, p. 154-177.
UNESCO. (2003). Language vitality and endangerment. Document submitted to the International Expert Meeting on UNESCO Programme Safeguarding of Endangered Languages. Paris: março 2003. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000183699
[i] Exposição em mesa-redonda sobre Políticas Linguísticas, no I Encontro Nacional do GT Nacional da Década Internacional das Línguas Indígenas. Manaus, AM, 09 de agosto 2023.
[ii] D’ANGELIS [2001], 2012.
[iii] D’ANGELIS 2022.
[iv] D’ANGELIS 2023 – a sair.
[v] D’ANGELIS, 2024.
[vi] UNESCO 2003.
[vii] Plano de Ação para a Década Internacional das Línguas Indígenas no Brasil (junho/2021).
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