Hoje, dia 25 de março, é um dia importante na história das lutas pela sobrevivência dos povos originários do Brasil. Pela primeira vez, em todo o continente americano, duas línguas indígenas foram introduzidas na configuração de um smartphone, com todas as suas particularidades fonológicas e ortográficas, incluindo assim um contingente de milhares de pessoas que poderá agora se comunicar por celular, também por escrito, em sua própria língua materna. A Motorola lançou os novos dispositivos (moto g10, moto g30 e moto100, com possibilidade de atualização de outros modelos) nas línguas Kaingang e Nheengatu, depois de firmar uma parceria com a equipe de pesquisa em Línguas Indígenas da Unicamp, coordenada pelo Professor Wilmar D’Angelis, co-fundador da Kamuri. 

Nesta entrevista, o Professor Wilmar explica qual a origem deste projeto, como se desenvolveu, e como esta oportunidade de telefonia em língua própria significa um avanço na luta pela revitalização e fortalecimento das línguas indígenas em perigo de extinção. Explica também por que a luta pela língua é parte essencial da luta dos povos indígenas em defesa da sua cultura e de seu direito de existir como sociedades autônomas dentro do território nacional.


Por que este projeto é considerado inédito, e quais as características destas duas línguas?

Este lançamento da Motorola tem a característica única e inédita, em toda a América, de poder ser configurado nas línguas indígenas Kaingang e Nheengatu. O Kaingang é uma língua Jê, falada no sul do Brasil por uma população de mais de 45 mil pessoas. Os falantes da língua, porém, giram em torno de 20 mil pessoas, pelo menos, sendo a terceira língua com maior número de falantes no Brasil. Já o Nheengatu é uma língua amazônica, surgida a partir do século 17 e que se espalhou por grande parte da região Amazônica, sendo falada hoje por várias comunidades do Alto Rio Negro, no médio e baixo Amazonas, e no baixo Tapajós.


Como surgiu este projeto?

O projeto surgiu a partir de uma iniciativa da Motorola que procurou a nossa equipe na Unicamp, pela repercussão do nosso trabalho de revitalização de línguas indígenas. Em 2019, Ano Internacional das Línguas Indígenas, nós organizamos o nosso 11º ELESI, na Unicamp, e também lançamos um livro, pela Editora Curt Nimuendajú, reunindo os resultados destas pesquisas e experiências. A perspectiva que levou pessoas da Motorola a nos procurar foi exatamente a motivação dada por nossas reflexões sobre a revitalização e o fortalecimento das línguas minoritárias. Temos defendido e insistido que para serem fortalecidas estas línguas precisam estar cada vez mais presentes em suportes de prestígio, elas precisam ser vistas pelas novas gerações destas comunidades em lugares públicos e de relevância. E nada melhor do que os computadores, os celulares, as tecnologias de informação e comunicação como lugar de alto prestígio e de alta visibilidade. Este aspecto é fundamental, ou seja, a visibilidade que as línguas minoritárias precisam ganhar para serem reconhecidas como línguas, ao lado de todas as outras. Esta discussão repercutiu entre as pessoas da empresa a partir de textos que divulgamos e que falam justamente sobre como fortalecer e garantir a sobrevivência das línguas minoritárias.


E que outros fatores também são essenciais neste esforço de fortalecimento das línguas indígenas?

Um fator que se revelou muito importante é o próprio trabalho da tradução, que na verdade também já vínhamos defendendo como uma das práticas que fortalecem e que trazem enriquecimento para a língua, garantindo a expansão do seu léxico e das possibilidades expressivas de uma língua. Neste trabalho com a Motorola, o esforço de tradução foi um trabalho muito intenso e exigente porque não se tratava apenas de traduzir de uma língua pra outra, mas traduzir toda uma terminologia específica e um linguajar próprio do mundo das comunicações e das tecnologias de informática.


E como foi a formação da equipe e a realização do projeto?

Tivemos um prazo relativamente apertado, em razão dos cronogramas da própria empresa. Foram oito meses de trabalho intenso, de julho de 2020 até fevereiro deste ano. Neste período reduzido, tivemos que selecionar e treinar uma equipe de quatro tradutores da língua Kaingang e outros quatro da língua Nheengatu, além de dois revisores da língua amazônica: um docente da UFAM e uma professora do IFAM de Manaus, que é doutoranda na Unicamp, enquanto e eu próprio fiz a revisão da língua Kaingang.  Os tradutores trabalharam com mais de 20 mil expressões, frases, comandos, instruções de orientação, formato de data e hora, APPs e tudo o mais que está dentro de um smartphone, para o usuário poder configurar o celular em tudo o que aparece na tela.


O que este trabalho exigiu da equipe?

Tivemos que nos comunicar muito a respeito de traduções cabíveis ou, nos casos de empréstimos, sobre a forma adaptada de termos estrangeiros, além da transliteração de nomes de lugares, moedas nacionais e sistemas de medidas. No caso do Nheengatu, tivemos que dialogar muito e entender minuciosamente as diferentes ortografias existentes, e deliberarmos sobre uma ortografia para uso neste equipamento. A produção deste celular exigiu também uma configuração de teclado e de uso de caracteres por conta de características que estas línguas possuem e que não existem em português, espanhol, inglês, etc. Por exemplo, os sons representados pelas letras i, y ou u com ~ (til) são inexistentes nas línguas usualmente presentes nos celulares, e foi um trabalho espetacular, mas muito minucioso e cuidadoso realizado por engenheiros da Motorola sob nossa consultoria, e em constante comunicação comigo e com os tradutores indígenas. Esse trabalho, portanto, envolveu equipes de engenheiros e especialistas de língua e linguísticas da Motorola, e a nossa equipe de pesquisa em idiomas da Unicamp e também alguns membros da Kamuri. No caso do Nheengatu, é bom ressaltar que com relação aos caracteres, o celular está preparado para receber e apresentar a ortografia dessa língua também nos países de língua espanhola, que são a Colômbia e Venezuela, onde há comunidades de falantes e com características específicas de escrita.


Quais os resultados que vocês esperam desta experiência?

Então, o desafio foi muito grande, vale como experiência e com certeza aparecerão defeitos, falhas, haverá muitas coisas a serem corrigidas, e que só serão identificadas pelos próprios usuários, com o tempo. A Motorola já nos deixou em aberto a possibilidade de atualizações, assim que localizarmos os problemas e também possibilidades de melhorar a tradução. Esta será uma experiência importantíssima por ser piloto, nunca houve nada assim antes para que pudéssemos nos basear. Os prazos foram curtos, a equipe foi menor do que o desejado, mas nada nos desanimou ou nos fez desacreditar que valia a pena ir em frente nessa oportunidade de fazer disso um trabalho muito importante para o fortalecimento das línguas indígenas. Temos certeza de que haverá consequências para estas comunidades e para estas línguas que irão extrapolar o smartphone.


Que consequências são estas que vocês estão antevendo?

Vale a pena destacar, entre estas consequências, que no caso das duas línguas, o uso de smartphone pela comunidade vai ampliar o acesso às redes. Então o smartphone pode ser um instrumento dos professores indígenas, exatamente pelo fortalecimento da imagem positiva da língua. E no caso especifico do Nheengatu, há uma circunstância específica. No passado, o Nheengatu se espalhou por uma grande região no Amazonas, mas aos poucos, com a entrada de mais colonos brancos, com a exploração da borracha, e a chegada de nordestinos, o Nheengatu acabou se tornando uma língua mais restrita, falada somente pelos indígenas, o que antes não acontecia. Em certas regiões, ela ainda é forte, como na região do alto Rio Negro. Tem expressão importante na região do médio e baixo Amazonas, especialmente na foz do Rio Madeira e em Parintins, que já é divisa com o Pará, mas são regiões distintas. No baixo Tapajós, o Nheengatu tem sido revivido, mas esta dispersão do Nheengatu tem gerado diferenças dialetais pelo contato com as línguas locais, como por exemplo, no alto Rio Negro com línguas Aruak. Então, pela possibilidade de cada um escrever do seu modo, constituíram-se ortografias distintas. Há pelo menos quatro delas bem importantes, e tivemos que trabalhar com estas diferenças. Foi, então a partir desse diálogo, dessa necessidade de trabalhar e refletir sobre esta questão ortográfica, que surgiu um movimento forte entre os falantes do Nheengatu pela constituição de uma comunidade de redatores e pesquisadores da língua, que buscam algum tipo de unificação, se possível, e de contribuição coletiva para um dicionário único, e mesmo de uma Academia Indígena da Língua Nheengatu. Essa é uma das consequências deste nosso trabalho, que só virá a fortalecer a língua.


Para terminar, qual é a importância deste projeto de revitalização e fortalecimento das línguas indígenas para a sobrevivência física e cultural dos povos originários do Brasil?

A linguagem é, certamente, ferramenta de comunicação entre as pessoas. Precisamos dela porque somos uma espécie social, somos seres sociais porque adquirimos linguagem; é a linguagem, afinal, que nos constitui, que configura a nossa mente e que sustenta as nossas memórias. É exatamente por nos constituir, e por ser um dos meios principais da nossa endoculturação (ou seja, de nossa entrada na cultura da sociedade na qual nascemos), a língua é muito mais do que uma simples ferramenta de comunicação ou de transmissão de informações. A língua não é um “rotulário” das coisas que existem, por si, no mundo; é a língua que constitui o mundo tal qual ele se apresenta a nós, e nos constitui em relação a ele. É por isso que a preservação da língua é parte essencial das lutas indígenas do Brasil pelo seu direito de existir.



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